terça-feira, 28 de agosto de 2007

Continuidade tornada descontínua

É comum dizer que o ser humano tem mania de classificar tudo: animais, alimentos, livros, palavras, e até outros seres humanos. Classificações muitas vezes são úteis, nos ajudam a fazer o que temos de fazer de forma mais eficiente. Mas também não se precisa procurar muito para notar que nem sempre funcionam. Sempre tem um item que não se encaixa bem em nenhuma categoria ou que foge à definição. No entanto, há um problema pior.

Quando se classifica, é preciso transformar algo contínuo em algo discreto. Isso é, se reduz infinitos casos a um número finito deles. É como quando alguém diz sua idade. Ninguém diz que tem “20 anos, 1 mês, 13 dias, 8 horas, 23 minutos, 7 segundos, tantos milésimos e etc”. Acabamos “jogando fora” o resto do número. Isso se torna especialmente ruim quando se classifica algo em um número muito pequeno de categorias. Certamente já deve ter tido dificuldade em responder sinceramente, com um sim ou um não, se estava bem naquele dia.

Às vezes, é necessária tal classificação em dois extremos. Você é considerado um adulto a partir do momento que faz 18 anos. Isso não quer dizer que de repente você deixa de ter espinhas, dúvidas ou de gostar de heavy metal. É um processo contínuo que, por razões legais, tem de se tornar discreto, deixando o “jovem” responsável com menos liberdade, e o jovem irresponsável com liberdade demais.

Outro exemplo de problema é a classificação em raças. Quando uma pessoa passa a ser de descendência judia? Quando uma pessoa deixa de ser negra e passa a ser branca? Foi um problema enfrentado por Hitler e, mais recentemente, pelo governo brasileiro. Ficou famoso o caso em que irmãos gêmeos univitelinos foram classificados como de raças diferentes.

Processos de seleção raramente são prazerosos para a maioria de nós. Eles também classificam em dois extremos: os selecionados e os não selecionados. Quando tal processo ainda depende tanto da sorte – como é o caso do vestibular – o que se pode esperar? Com certeza, não será perfeita. Pequenas diferenças podem acabar criando grandes diferenças.

Tudo se agrava mais quando se pensa que, não só nós influenciamos as classificações, como elas também nos influenciam. Nosso cérebro facilmente assimila quem pertence ao “nosso” grupo ou não. Numa pesquisa, num acampamento, separaram adolescentes em dois grupos, aleatoriamente. Fizeram com que eles competissem entre si, e, passado alguns dias, estavam lutando entre si, fazendo guerras. Todos achavam o outro grupo pior que o seu, e atribuíam características ruins a ele. Tiveram de parar o experimento antes que se matassem. Não se trata de um caso isolado. Ao serem divididos em grupos por processos como “cara ou coroa”, até mesmo adultos atribuem características ruins aos outros grupos e boas ao seu.

Acredito que muitas das divisões que existem hoje são tão aleatórias como o processo de cara e coroa. Povos se odeiam por nenhum motivo além de acreditar em um personagem mítico diferente, ou até mesmo ter uma cultura diferente. Mesmo no nosso dia a dia acabamos fazendo tais divisões: nossos amigos, nossos não amigos (que certamente são menos divertidos, inteligentes e legais); nossa família e as outras famílias (que certamente têm hábitos muito mais estranhos e não são bem estruturadas), freqüentemente causando brigas. No fim nós próprios cometemos o mesmo erro que tanto criticamos.